O espelho quebrado: quando tudo parece autismo, mas não é

Tem gente que passa a vida se sentindo um erro de fábrica.

É o tipo de pessoa que sempre se percebeu diferente, mas nunca entendeu exatamente por quê. Tudo exige mais esforço: conversas sociais parecem teatro ensaiado, mudanças de rotina são quase traumáticas, ambientes barulhentos são um campo de batalha sensorial. Ao longo dos anos, os rótulos vieram: depressão resistente, transtorno de personalidade, TOC, ansiedade social. Mas nenhum diagnóstico parecia dar conta da complexidade. A sensação era a de viver interpretando um papel para se encaixar num mundo que nunca foi feito para aquele tipo de mente.

A hipótese surge quase como uma revelação tardia: e se for autismo?

A identificação é imediata. Vídeos nas redes sociais descrevem sintomas em que a pessoa se reconhece. Testes online sugerem pontuações elevadas. Influenciadores neurodivergentes compartilham suas vivências e tudo parece fazer sentido. Finalmente, há uma explicação para o sentimento crônico de inadequação. Finalmente, o alívio de um nome. Mas… será mesmo?

O transtorno do espectro autista (TEA) no adulto é um dos maiores desafios diagnósticos da psiquiatria moderna. Em muitos casos, ele de fato passa despercebido por anos, especialmente quando o indivíduo possui inteligência preservada e capacidade verbal desenvolvida. Estudos como a metanálise publicada em Molecular Autism (2020) mostram que o diagnóstico frequentemente é negligenciado em adultos, resultando em longos itinerários terapêuticos marcados por diagnósticos equivocados.

Não raro, o TEA é confundido com TDAH, transtornos de ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo, transtornos de personalidade esquiva ou esquizotípica, burnout crônico e até anorexia atípica. Uma metanálise da JAMA Psychiatry (2023) revelou que cerca de 42% dos adultos diagnosticados com autismo haviam recebido previamente dois ou mais diagnósticos psiquiátricos errados. Isso mostra o quanto o espectro autista pode ser um verdadeiro camaleão clínico.

Mas o que poucos têm coragem de dizer — e que precisa ser dito com clareza — é que o pêndulo também pode balançar demais para o outro lado.

Nos últimos anos, a expansão dos critérios diagnósticos, aliada à popularização de conteúdos simplificados nas redes sociais, tem gerado um fenômeno preocupante: o autodiagnóstico em massa. Pessoas em sofrimento psíquico, muitas vezes atravessando lutos emocionais, crises existenciais, fases de esgotamento ou traumas mal elaborados, encontram no autismo uma identidade que parece explicar tudo. E passam a se identificar como autistas sem qualquer avaliação clínica especializada.

Estudos como o de Rødgaard et al., publicado em Autism (2021), apontam que parte do crescimento no número de diagnósticos pode refletir essa hiperidentificação — mais do que uma real detecção de casos negligenciados. E isso tem consequências sérias: indivíduos com transtorno de personalidade borderline, TDAH, ciclotimia, traumas complexos ou quadros de ansiedade crônica podem ser erroneamente incluídos no espectro, o que leva a erros terapêuticos, medicalizações indevidas e abandono do tratamento adequado.

É preciso reforçar: o diagnóstico de TEA no adulto é predominantemente clínico. Ele exige uma escuta longitudinal, análise detalhada da trajetória do desenvolvimento, investigação das funções adaptativas e avaliação contextualizada dos sintomas. Nenhuma escala substitui a sensibilidade de uma avaliação médica completa. Testes são ferramentas auxiliares, não atestados diagnósticos.

E mais: identificar-se com uma vivência compartilhada não equivale a ter um transtorno. O sofrimento psíquico legítimo não deve ser reduzido a modismos ou explicações simplistas. O acolhimento não pode substituir o rigor técnico.

Porque no desejo de dar sentido à dor, muitos estão assumindo um diagnóstico que não é seu — e, com isso, deixando de tratar o transtorno que realmente está presente.

O autismo no adulto não é moda, nem tribo, nem estilo de ser. É uma condição do neurodesenvolvimento, com impactos objetivos, clínicos e funcionais.

E sim, ele pode ser confundido com muita coisa — mas também pode ser confundido com ele mesmo, quando mal interpretado.

Precisamos de mais diagnósticos corretos. Mas, acima disso, precisamos de mais diagnósticos responsáveis.

Porque nem todo sofrimento é autismo. E nem toda identificação é diagnóstico.

No fim, a única coisa mais perigosa que não enxergar o autismo... é enxergar autismo onde ele não está

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